Teletrabalho na Era do Desempenho

Teletrabalho na Era do Desempenho

A conjuntura pandémica entrou nas nossas vidas em 2020 e parece ter vindo para ficar. Essa ideia tem sido muito difundida nos media e é quase unanimemente aceite pelos principais líderes políticos, bem como pela comunidade científica à escala mundial. Consequentemente, foi, é e será responsável por transformações realmente significativas nos hábitos, representações e comportamentos que fazem parte do modus operandi das sociedades ocidentais.

Ao mesmo tempo em que procuramos ainda compreender a magnitude real deste fenómeno, podemos dizer que a influência do fator “covid-19” se fez sentir, desde logo, na esfera profissional por via das alterações no modelo de trabalho tradicionalmente adotado e reproduzido pela sociedade. Uma das maiores faces dessa transformação tem sido a adoção massiva de práticas de trabalho à distância por parte das empresas e trabalhadores por conta própria. Como tal, tornou-se muito mais frequente que  médicos passem a realizar consultas online, que personal trainers assegurem um acompanhamento personalizado através apps como o Zoom ou Webex, e que professores lecionem através de videoconferência. Em todos os segmentos, as vicissitudes exigiram uma reinvenção profissional dado que o trabalho não-presencial passou de alternativa possível a norma momentaneamente instituída, sempre que a natureza das funções e a atividade da empresa o permitem. Esta modalidade tem-se revelado extremamente importante no contexto em que vivemos, não só numa perspetiva de evitar a paralisação integral das atividades das empresas, como também pela redução de custos fixos para as mesmas.

Contudo, este verdadeiro boom do teletrabalho representa algo mais profundo, traduzindo-se numa oportunidade para uma verdadeira mudança de visão da esfera profissional, tal como a conhecemos nas últimas décadas. Efetivamente, este parece ser o momento ideal para que seja realizada uma verdadeira transição digital e a aplicação prática do teletrabalho em Portugal, deu-nos a conhecer diferentes realidades. Recorrendo à interessante rubrica do jornal económico online Eco, denominada “Gestores em Teletrabalho”, o testemunho de responsáveis de algumas das maiores empresas do país sublinha “faces distintas da mesma moeda”. Por um lado, é sublinhada a ideia de que o teletrabalho representou mais-valias no reforço da coesão interna nas equipas de recursos humanos, bem como a certeza de que a difusão do trabalho remoto será impreterivelmente uma realidade. Numa ótica distinta, são mencionados os desafios impostos pelo trabalho à distância e destacada a necessidade ainda mais efetiva de exigência, disponibilidade e foco por parte dos colaboradores, com o intuito de manter os padrões de serviço assegurados aos clientes.

Tendo por base esta heterogeneidade de visões, é inegável que o teletrabalho se distingue por traços muito específicos, uma vez que o trabalhador pode exercer a sua atividade em qualquer lugar desde que conectado telematicamente com o empregador, inclusivamente no domicilio ou em espaços de coworking. É também indiscutível que existem enormes benefícios de trabalhar sem estarmos fisicamente no escritório: permite uma gestão mais efetiva do tempo, voltada para a conclusão prática das tarefas conferidas; uma maior qualidade de vida e equilíbrio entre a vida pessoal e profissional; um novo horizonte de aprendizagem profissional que possibilita oportunidades de valorização. Na lógica da empresa, os pressupostos mais valorizados são a possibilidade de maior eficiência, produtividade e atratividade aos recursos humanos de faixas etárias mais jovens; a redução de despesas; o reforço da confiança entre colaboradores de acordo com o mantra “máxima liberdade, máxima responsabilidade”.

Contudo, apesar da sua origem remontar à crise petrolífera da década de 70 e de encontrar cada vez mais adeptos, é aceitável admitirmos que o conceito de trabalho remoto não conseguiu ainda impor-se verdadeiramente no mundo dos negócios. Uma das explicações mais sustentadas para a afirmação tardia do mesmo, diz respeito ao facto de se encontrar ainda muito enraizada a gestão presencial, onde se faz uso da supervisão e de mecanismos de controlo no seu cariz mais direto. Ora, em oposição, o teletrabalho consiste em conceções com ênfase na autonomia e nos conhecimentos de índole digital, promovendo menos dependência e mais foco nas práticas individuais. Tendo em conta esta dicotomia, o acelerar do processo de virtualização dos locais de trabalho implicará uma alteração profunda dos padrões conceptuais da relação com o lado profissional, nomeadamente no que diz respeito a parâmetros como “motivação”, “produtividade”, “disponibilidade” e “liderança”. De forma ainda mais profunda, tendo por base o conceito do filósofo coreano Byung-Chul Han, que caracteriza o indivíduo dos nossos dias como “indivíduo de desempenho”, que busca estabelecer e cumprir objetivos, atribuindo primazia à performance na construção da felicidade e realização pessoal, a institucionalização do teletrabalho irá trazer consigo um cenário único onde novos desafios se colocarão face a uma rutura com as referências de trabalho presencial tal como as conhecemos.

De acordo com um estudo de 2017 da EUROFOUND e da OIT denominado “Working anytime, anywhere: The effects on the world of work”, concluiu-se que a intensidade de trabalho associada ao teletrabalho se revelou consideravelmente superior quando comparada à verificada nos locais de trabalho convencionais. De facto, nos estados membros da União Europeia, o número de trabalhadores que dizem trabalhar várias vezes no seu tempo livre para cumprir objetivos e exigências relacionadas com a atividade da sua empresa mostrou-se 6 vezes superior em relação a quem trabalha nas instalações da sua empresa. No mesmo estudo, é também indicado que o teletrabalho apresenta maior potencial de conflito com a vida pessoal dado que, além de mudar a maneira como os indivíduos interagem no trabalho, o mesmo pode originar mudanças profundas nas relações familiares e tornar invisível a fronteira entre o trabalho e a vida pessoal. Dado que o espaço familiar e o profissional serão exatamente o mesmo, esta erosão poderá ser catalisador de conflitos que abalem as estruturas familiares e, paralelamente, ameacem a produtividade. Por fim, poderemos estar perante um elemento potencializador as diferenças de género. Os dados do estudo da EUROFOUND e da OIT indicam que, enquanto os homens apontam razões ligadas à eficiência e produtividade para optar pelo teletrabalho, as mulheres apontam sobretudo motivações ligadas à conciliação de responsabilidades do foro profissional e familiar, acabando por ter de trabalhar à noite e sacrificando as suas horas de descanso.

Assim, podemos concluir que implementação de orientações mais flexíveis no que concerne à organização do trabalho, aos horários e regimes de teletrabalho, representam uma oportunidade para as empresas se reinventarem sem protelar o “business as usual”. De qualquer maneira, para além da busca constante na literacia a nível digital, tal implicará uma necessidade mais abrangente de leis, regulações, contratos e promoção de formação e boas práticas de teletrabalho que contribuam realmente para a eficiência de processos e bem-estar dos colaboradores. Estes pontos serão fundamentais no sentido de agir sobre o cariz cada vez mais auto-exploratório dos indivíduos neste início do século XXI e que tem tornado cada vez mais vulgar a difusão de problemas de saúde relacionados com o trabalho, tais como stress, síndrome de hiperatividade, dependência do trabalho (workaholic) e síndrome de burnout.

Fazendo uma analogia com o nosso quotidiano, desde que se instalou a nova dinâmica motivada pelo contexto epidemiológico que atravessamos, o nosso consumo diário diminuiu exponencialmente e fez-nos refletir, compreender e identificar os produtos realmente primordiais na nossa rotina. Este processo é algo similar àquele pelo qual passa a generalidade das empresas no âmbito do estado de calamidade e onde se insere a aposta no trabalho não presencial. Hoje, sabemos que o teletrabalho permanecerá obrigatório durante o corrente mês de maio e que em junho, continuará previsto o teletrabalho parcial, com horários desfasados ou equipas em espelho, tendo em conta a necessidade de evitar a concentração de colaboradores nos escritórios. Amanhã, o mesmo deverá estabelecer-se progressivamente, de forma equilibrada e, provavelmente, não integral, sendo complementado com o trabalho presencial. Estamos, portanto, perante um momento-chave no mundo empresarial e que será definidor na relação do “eu” com o plano profissional nas próximas décadas. Surgirão novas oportunidades, modos de comunicar e colaborar e competências valorizadas no mercado de trabalho. E será a resposta a essa necessidade de adaptação por parte de todos os stakeholders envolvidos que dará vida a todo e qualquer business model e o fará caminhar rumo ao sucesso.

 

Por João Freire, Project Coordinator